sexta-feira, 16 de julho de 2010

Pragmatismo e tânatos




Isso é que é ser pragmático:
se morre alguém, esquece!
O dia borbulha tarefas na caldeira da repartição.
Projetos, compromissos, vantagens a maximizar.
Que importa o morto?
Urge a coisa dos vivos - vivíssimos.
O falecido teve o seu momento e está nos jornais,
Na forma de fotografia e editorial.
"Deixou obra digna de antologias,
Pena que seres de sua bonomia
Interrompam sua contribuição à decência.
Paz a seus restos".
Isso é que é ser pragmático.
Morreu? Era parte de nós?
A nossa parte está intacta
E circula no corredor com nossas ambições.
Importa o que somos. Não quem foi.
E somos esse afolivo de emergências,
Esses objetivos funcionais,
Papéis imediatos, obsessões, etc.
Quanto à destreza expositiva do morto,
Quanto à família do morto,
Quanto à...
Deixemos disso, não há perdas irreparáveis,
E há autoridades em perspectiva,
Há documentos por despachar,
não como se despacha um féretro.
Vamos, sejamos pragmáticos,
Declara-me, menos com palavras que com gestos,
O cara que trabalha na sala ao lado.
É verdade, a morte não tem sentido prático
(nem a vida).
Mas para mim era um poeta
E mesmo que fosse outro defunto
Significaria sempre o mistério.
Era um poeta
- e a poesia não é útil aos planos do interesseiro.
Mas uma imagem me manteve o dia melancólico.
É a recordação do poeta Enriquillo Sánchez,
que teve apenas o que deixou por escrito.
Não é preciso ser pragmático, definitivamente.

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